Por Carmen Munari
SÃO PAULO (Reuters) - Chamado por muitos de "guerreiro", o mineiro José Alencar, que morreu aos 79 anos nesta terça-feira, marcou sua passagem na vice-presidência da República entre 2003 e 2010 pela cruzada obstinada contra o câncer. Não há brasileiro que não o tenha visto entrar e sair de hospital ou acompanhar suas idas e vindas na UTI.
A doença o acompanhou por 14 anos, em que ele precisou passar por 17 cirurgias para retirada de tumores. Aceitou todo tipo de tratamento durante esse período. Além das cirurgias, quimioterapia e até um procedimento experimental nos Estados Unidos.
Alencar enfrentou a doença com otimismo e sem escondê-la da opinião pública. A cada vez que deixava o hospital, apresentava um sorriso no rosto e, de terno e gravata e passos firmes, falava aos jornalistas.
Em 1997, foram detectados os primeiros tumores malignos. O rim direito e dois terços do estômago foram retirados. Cinco anos depois, outro tumor, dessa vez na próstata, que foi removida. Em julho de 2006, surgiu um tumor maligno no abdome. Apesar de removido, foi este que voltou várias vezes, até perfurar seu intestino agora em fevereiro.
"Eu não estou habituado às coisas fáceis. Eu sempre me deparei na vida com problemas difíceis e nunca deixei de enfrentá-los", disse, após uma das operações. E aconselhava: "O desespero não ajuda em nada."
O jornalista Ricardo Kotscho, que foi secretário de imprensa da Presidência da República no governo Lula, o visitou no hospital Sírio-Libanês no mês passado -hospital que abrigou o ex-vice na maior parte de sua doença.
"Falante e animado como de costume, embora esteja bastante debilitado pela doença, Alencar recordou histórias de Carantinga, no interior mineiro", contou Kotscho em seu blog. Disse ainda que durante a visita Alencar cantou velhos sambas de Noel Rosa.
Alencar chegou a ser operado durante a campanha eleitoral de 2006 para retirada de um dos tumores na região abdominal. Passada a reeleição vitoriosa, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva elogiou o esforço do companheiro de chapa, chamando-o de "jovial".
"Quero de público agradecer a participação jovial do meu vice-presidente da República. O Zé Alencar, durante o processo eleitoral, fez uma cirurgia, os médicos não queriam que ele fizesse carreata e, por onde eu andava, o Zé Alencar já tinha participado como se fosse um menino de 18 anos", disse Lula na época.
A cirurgia mais radical ocorreu em janeiro de 2009. Alertado da complexidade, Alencar ficou na mesa de cirurgia por 17 horas, quando extraiu 18 pequenos tumores e foi submetido a quimioterapia ao mesmo tempo.
Em maio daquele ano, o câncer voltou e o vice-presidente decidiu passar por um tratamento experimental nos Estados Unidos que ele afirmava estar surtindo efeito. "Temos boas notícias. O resultado da tomografia mostra uma reação do medicamento sobre o tumor", disse, em julho de 2009.
Católico, sempre evocava a figura de Deus em suas declarações. "Ninguém manda na vida, o dia que Deus quiser me levar, me leva mesmo e não precisa de câncer para levar."
CAMPANHA CONTRA JUROS
Alencar também será lembrado por sua constante crítica à política de juros altos do governo Lula, comportamento que podia desagradar o Banco Central, responsável por fixar a taxa, mas servia de ponte com o setor produtivo, de onde era egresso.
Um dos principais industriais do setor têxtil, ele procurava ser a voz dos empresários no segundo mais alto posto da hierarquia política.
Chegou a propor que políticos tomassem o lugar dos técnicos no Banco Central. Em 2005, disse que os juros do BC não são uma forma de controlar a inflação, mas um "despropósito", um "assalto" contra os trabalhadores e a classe empresarial.
Em um seminário em São Paulo em agosto de 2008, o vice não se intimidou com a presença do então presidente do Banco Central, Henrique Meirelles.
"A tese de que os juros elevados são um instrumento para controle da inflação é verdadeira. No entanto, assim como os bons remédios, é preciso que sejam aplicados depois de um diagnóstico correto e seguro", afirmou a uma plateia de dirigentes empresarias.
Enquanto ele discursava, Meirelles parecia não ouvi-lo e fazia comentários com o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan, também presente ao evento.
O então vice foi ainda voz isolada no governo colocando-se de forma contrária à cobrança da CPMF, tributo defendido por Lula até o último dia de seu governo.
Em dezembro de 2007, ao comentar a rejeição da contribuição pelo Senado, disse se tratar de um "imposto abominável". Chamadas de "remendo", as medidas anunciadas pelo governo para compensar o fim da CPMF também não foram poupadas.
Alencar integrou em 2002, pelo PL (Partido Liberal), a chapa encabeçada pelo então candidato Lula. Naquele momento, o PL era um dos principais apoios partidários à candidatura do petista.
A dobradinha Lula-Alencar foi repetida na reeleição de 2006, quando Alencar já estava no PRB (Partido Republicano Brasileiro) e o PL alterou o nome, para Partido da República (PR). As trocas de siglas foram consequência do escândalo do mensalão, que envolveu os partidos da base lulista, mas não atingiram diretamente Alencar.
DE BALCONISTA A INDUSTRAL
No governo, Alencar acumulou a vice-presidência com o posto de ministro da Defesa entre novembro de 2004 e 31 de março de 2006. Antes de integrar o governo Lula, tentou sem sucesso a candidatura ao governo mineiro em 1994 e elegeu-se senador em 1998 pelo PMDB, de onde partiu para o PL em 2001, já em um movimento que visava a aliança da legenda com o PT para a disputa presidencial.
Com ar bonachão, sempre bem-humorado, Alencar mantinha o jeito e o sotaque característicos do interior de Minas Gerais.
Nascido em 17 de outubro de 1931, no lugarejo de Itamuri, município de Muriaé, deixou a casa dos pais aos 14 anos para trabalhar como balconista numa loja de armarinhos em Muriaé. Pouco tempo depois, transferiu-se para Caratinga, ainda como balconista.
Emancipado pelo pai aos 18 anos, inaugurou sua carreira de comerciante com a loja "A Queimadeira", onde se vendia de tudo um pouco: tecidos, calçados, chapéus e sombrinhas. Depois, foi viajante comercial, atacadista de cereais, dono de fábrica de macarrão, atacadista de tecidos e finalmente industrial do ramo de confecções.
Em 1967, fundou, com um sócio, na cidade de Montes Claros, a Companhia de Tecidos Norte de Minas (Coteminas), hoje um dos maiores grupos industriais têxteis do país.
Casado com Mariza Campos Gomes da Silva, Alencar deixa três filhos.
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