Da nossa parte – esquerda em geral e do PT – não podemos esquecer que é preciso não só discutir os efeitos políticos do julgamento, mas também as condições institucionais e políticas que abriram espaços para os nossos erros. Isso significa privilegiar duas lutas de fundo, sem as quais tudo pode acontecer de novo: financiamento público das campanhas e verticalidade das alianças, para formar partidos fortes.
Quero encerrar a minha série de artigos, sobre o processo do “mensalão”, defendendo uma tese que não será simpática para os que, através de um olhar apressado – baseados no princípio da solidariedade com quem “está sendo condenado sem provas” (o que parece ser certo em alguns casos) – gostariam que se dissesse, rapidamente, que o processo redundou num resultado, tanto “ilegal” como “ilegítimo”. Entendo que isso seria uma solidariedade, além de ineficaz, jurídica e politicamente incorreta.
Sustento que o processo foi “devido” e “legal”. E o seu resultado não está manchado de ilegitimidade: os procedimentos garantiram a ampla defesa dos réus e, embora se possa discordar da apreciação das provas e da doutrina penal abraçada pelo relator (“domínio funcional dos fatos”), a publicidade do julgamento, a ausência de coerção insuportável sobre os Juízes – inclusive levando em conta que boa parte deles foi nomeada pelo próprio Presidente Lula – dão suficiente suporte de legitimidade à decisão da Suprema Corte.
Entendo que todo o Estado de Direito tem espaços normativos amplos para permitir-se, com legitimidade, tanto condenar sem provas como absolver com provas, nos seus Tribunais Superiores. Isso é parte de sua engenharia institucional e do processo político que caracteriza as suas funções. Nas decisões das suas Cortes, às vezes predomina o Direito, às vezes predomina a Política. O patamar da sua decisão legitíma – importante nos regimes de democracia política ampla – é alcançado, então, não somente através das suas instâncias jurídicas de decisão, mas – nos seus casos mais relevantes- na esfera da política, por dentro e por fora dos Tribunais.
Kelsen diria que a função de todo o Tribunal Constitucional é, em última instância, “garantir a paz política no interior do Estado.” Marx, se pudesse corrigir Kelsen, provavelmente acrescentasse: “para manter as relações de dominação e controle reguladas nas instâncias formais do Direito.” Eu diria, se tivesse alguma estatura para ombrear com estes dois gigantes: “ambos tem razão”. No período atual, juristas eminentes como Luigi Ferrajoli sustentam que a globalização também já é uma crise do direito em duplo sentido: um, objetivo e institucional, e outro, subjetivo e cultural, o que implica conceber que as Cortes superiores, na esteira do aprofundamento desta grave crise do Direito, poderão aumentar a sua autonomia para julgar acima das leis.
Esta função política do Tribunal Constitucional no Estado de Direito é cumprida em qualquer Estado Democrático. Não a partir do Direito como instância “pura” de caráter jurisdicional, mas através das influências ideológicas e culturais, que refletem nas Cortes Supremas. Estas influências se originam, principalmente, dos indivíduos e grupos organizados que dominam os espaços de controle e formação da opinião, onde a política esteriliza o Direito: a mídia, os aparatos culturais, dentro e fora do Estado, os partidos, os centros de produção do pensamento e da cultura. Isso ocorre não somente em julgamentos de quadros políticos da sociedade civil ou de Estado, mas em todos os julgamentos em que a disputa se dá – como juízo de fundo- sobre qual o projeto social e político que caracteriza o caso que está sendo julgado no tribunal.
Algumas vezes, as demandas que versam sobre direitos que estão nas instituições libertárias do Direito Constitucional moderno “ganham”: a constitucionalidade das cotas para negros e a constitucionalidade do Prouni, por exemplo; outras vezes – na minha opinião na maioria das vezes- quando se julga um caso que refletirá um juízo sobre conflitos de um período inteiro (por exemplo a capacidade da elite política neoliberal dar uma saída para a miséria e o desemprego), as decisões tendem a ser “estruturantes” da reação conservadora.
E isso não é feito porque os Juizes são mal intencionados ou, necessariamente, reacionários. São os mesmo Juizes que potencializaram direitos importantes em julgamentos históricos, como no caso “Raposa Serra do Sol”. A conservação das diferenças de “status” social e político – no regime do capital – é, também, uma das funções mais importantes do Estado Democrático de Direito. Este Estado tanto deve absorver conquistas como manter as diferenças dentro de certos limites, que são da natureza do regime do capital.
As diferenças a serem preservadas, porém, não se esgotam nas diferenças de classe, que naturalmente existem no capitalismo. São, também, as diferenças no tratamento que o Poder Judiciário necessariamente dá às distintas correntes ideológicas e de opinião. Foi esta a carga cultural que se apresentou na mídia de maneira uniforme sobre o Supremo. No caso, travestida de “luta contra a corrupção” e que, certamente, teve um impacto brutal na cabeça de cada Juiz do Supremo.
Perceba-se que, num ponto, ocorreu um empate estratégico: nem a mídia conseguiu mobilizar apoios de massas, para a condenação que ela já tinha feito, nem o PT conseguiu – sequer pretendeu – mobilizar bases sociais para pressionar legítima e legalmente o STF, por um “julgamento justo”. O que, por si só, indica que sabíamos que as nossas bases desconfiavam que algumas contas deveriam ser ajustadas.
No caso concreto do mensalão, como em tantos outros, não se trata de uma divisão linear ou de alinhamento automático a partir de classes sociais, nas distintas posições políticas sobre o julgamento, trata-se de um juízo dividido sobre a vida presente: as políticas do governo Lula, a “ralé” melhorando a vida dos pobres, os sindicalistas e intelectuais de esquerda “mandando” milhões de pessoas para fora da miséria; os negros pobres e os pobres do campo chegando nas Universidades, nas escolas técnicas federais, a Presidenta enfrentando a “sanha dos bancos”. Ou seja, uma pequena cobertura “real”, que o cheque com poucos fundos da democracia “formal” jamais ofereceu para a maioria do povo brasileiro.
No caso do “mensalão”, os foros de legitimação do julgamento foram amplos e não foram feitos somente pela mídia: a extrema esquerda corporativa se uniu, de maneira siamesa, ao “conglomerado” demo-tucano. Não somente apresentando candidatos “contra os políticos”, mas também fiéis escudeiros do moralismo udenista, promovido pela grande mídia. Perfilaram o lado dos “puros” contra os “políticos impuros”: o neoliberalismo, como utopia da direita, abraçou-se ao economicismo adjetivado de impropérios esquerdistas, para atacar um projeto político que vem resgatando da miséria milhões de brasileiros.
Os delitos que os réus cometeram – ou não cometeram – foram secundarizados neste processo do “mensalão”. Mas, o “lado” que os réus estiveram no processo político recente este, sim, foi muito importante e precisava ser vulnerabilizado. Tratava-se – como foi repetido exaustivamente em horário nobre – de “um esquema do PT para se eternizar no poder”.
As provas dos crimes se tornaram, assim, secundárias e o processo judicial poderá legar – num desserviço político à democracia – ao invés de condenados por crimes provados, “mártires” do ataque aos princípios “garantistas”. Alguns foram condenados, não pelos crimes provados, mas por suposições enquadradas (de fato) como “crimes políticos” para comprar reformas”.
O Estado Democrático de Direito não foi organizado para ser perfeitamente “justo”, mas o foi para ser adequado a um período histórico democrático do desenvolvimento capitalista, com desigualdades. E, muito menos, foi produzido para “revogar” o controle do capital sobre a vida pública e privada. Nem tiveram esta pretensão os seus constituintes. O que o Estado de Direito reflete, em geral, é o encravamento de conquistas do mundo do trabalho, do iluminismo democrático e das lutas libertárias da inteligência socialista mundial, no cerne do Estado.
Esta sua virtude é, todavia, uma finalidade secundária da sua organização jurídica, embora ela seja real e importante. A sua finalidade principal é manter, com um mínimo de coesão social, as desigualdades num nível em que as demandas de igualdade real não ameacem o desenvolvimento do capitalismo.
Da nossa parte – da esquerda em geral e do PT – não podemos esquecer que é preciso não só discutir os efeitos políticos do julgamento, mas também as condições institucionais e políticas, que abriram espaços para os nossos erros. Isso significa privilegiar duas lutas de fundo, sem as quais tudo poderá acontecer de novo: financiamento público das campanhas, para reduzir a influência das empresas no comportamento dos políticos e verticalidade das alianças, para formar partidos fortes, que possam se libertar das alianças sem princípios no Estado. Estas reformas sim ajudarão a melhorar todo o espectro político do país e, especialmente, ajudarão a viabilizar uma atuação mais autêntica da esquerda no palco da democracia e no cenário da Revolução Democrática.
Tarso Genro é Governador do Estado do Rio Grande do Sul
Quero encerrar a minha série de artigos, sobre o processo do “mensalão”, defendendo uma tese que não será simpática para os que, através de um olhar apressado – baseados no princípio da solidariedade com quem “está sendo condenado sem provas” (o que parece ser certo em alguns casos) – gostariam que se dissesse, rapidamente, que o processo redundou num resultado, tanto “ilegal” como “ilegítimo”. Entendo que isso seria uma solidariedade, além de ineficaz, jurídica e politicamente incorreta.
Sustento que o processo foi “devido” e “legal”. E o seu resultado não está manchado de ilegitimidade: os procedimentos garantiram a ampla defesa dos réus e, embora se possa discordar da apreciação das provas e da doutrina penal abraçada pelo relator (“domínio funcional dos fatos”), a publicidade do julgamento, a ausência de coerção insuportável sobre os Juízes – inclusive levando em conta que boa parte deles foi nomeada pelo próprio Presidente Lula – dão suficiente suporte de legitimidade à decisão da Suprema Corte.
Entendo que todo o Estado de Direito tem espaços normativos amplos para permitir-se, com legitimidade, tanto condenar sem provas como absolver com provas, nos seus Tribunais Superiores. Isso é parte de sua engenharia institucional e do processo político que caracteriza as suas funções. Nas decisões das suas Cortes, às vezes predomina o Direito, às vezes predomina a Política. O patamar da sua decisão legitíma – importante nos regimes de democracia política ampla – é alcançado, então, não somente através das suas instâncias jurídicas de decisão, mas – nos seus casos mais relevantes- na esfera da política, por dentro e por fora dos Tribunais.
Kelsen diria que a função de todo o Tribunal Constitucional é, em última instância, “garantir a paz política no interior do Estado.” Marx, se pudesse corrigir Kelsen, provavelmente acrescentasse: “para manter as relações de dominação e controle reguladas nas instâncias formais do Direito.” Eu diria, se tivesse alguma estatura para ombrear com estes dois gigantes: “ambos tem razão”. No período atual, juristas eminentes como Luigi Ferrajoli sustentam que a globalização também já é uma crise do direito em duplo sentido: um, objetivo e institucional, e outro, subjetivo e cultural, o que implica conceber que as Cortes superiores, na esteira do aprofundamento desta grave crise do Direito, poderão aumentar a sua autonomia para julgar acima das leis.
Esta função política do Tribunal Constitucional no Estado de Direito é cumprida em qualquer Estado Democrático. Não a partir do Direito como instância “pura” de caráter jurisdicional, mas através das influências ideológicas e culturais, que refletem nas Cortes Supremas. Estas influências se originam, principalmente, dos indivíduos e grupos organizados que dominam os espaços de controle e formação da opinião, onde a política esteriliza o Direito: a mídia, os aparatos culturais, dentro e fora do Estado, os partidos, os centros de produção do pensamento e da cultura. Isso ocorre não somente em julgamentos de quadros políticos da sociedade civil ou de Estado, mas em todos os julgamentos em que a disputa se dá – como juízo de fundo- sobre qual o projeto social e político que caracteriza o caso que está sendo julgado no tribunal.
Algumas vezes, as demandas que versam sobre direitos que estão nas instituições libertárias do Direito Constitucional moderno “ganham”: a constitucionalidade das cotas para negros e a constitucionalidade do Prouni, por exemplo; outras vezes – na minha opinião na maioria das vezes- quando se julga um caso que refletirá um juízo sobre conflitos de um período inteiro (por exemplo a capacidade da elite política neoliberal dar uma saída para a miséria e o desemprego), as decisões tendem a ser “estruturantes” da reação conservadora.
E isso não é feito porque os Juizes são mal intencionados ou, necessariamente, reacionários. São os mesmo Juizes que potencializaram direitos importantes em julgamentos históricos, como no caso “Raposa Serra do Sol”. A conservação das diferenças de “status” social e político – no regime do capital – é, também, uma das funções mais importantes do Estado Democrático de Direito. Este Estado tanto deve absorver conquistas como manter as diferenças dentro de certos limites, que são da natureza do regime do capital.
As diferenças a serem preservadas, porém, não se esgotam nas diferenças de classe, que naturalmente existem no capitalismo. São, também, as diferenças no tratamento que o Poder Judiciário necessariamente dá às distintas correntes ideológicas e de opinião. Foi esta a carga cultural que se apresentou na mídia de maneira uniforme sobre o Supremo. No caso, travestida de “luta contra a corrupção” e que, certamente, teve um impacto brutal na cabeça de cada Juiz do Supremo.
Perceba-se que, num ponto, ocorreu um empate estratégico: nem a mídia conseguiu mobilizar apoios de massas, para a condenação que ela já tinha feito, nem o PT conseguiu – sequer pretendeu – mobilizar bases sociais para pressionar legítima e legalmente o STF, por um “julgamento justo”. O que, por si só, indica que sabíamos que as nossas bases desconfiavam que algumas contas deveriam ser ajustadas.
No caso concreto do mensalão, como em tantos outros, não se trata de uma divisão linear ou de alinhamento automático a partir de classes sociais, nas distintas posições políticas sobre o julgamento, trata-se de um juízo dividido sobre a vida presente: as políticas do governo Lula, a “ralé” melhorando a vida dos pobres, os sindicalistas e intelectuais de esquerda “mandando” milhões de pessoas para fora da miséria; os negros pobres e os pobres do campo chegando nas Universidades, nas escolas técnicas federais, a Presidenta enfrentando a “sanha dos bancos”. Ou seja, uma pequena cobertura “real”, que o cheque com poucos fundos da democracia “formal” jamais ofereceu para a maioria do povo brasileiro.
No caso do “mensalão”, os foros de legitimação do julgamento foram amplos e não foram feitos somente pela mídia: a extrema esquerda corporativa se uniu, de maneira siamesa, ao “conglomerado” demo-tucano. Não somente apresentando candidatos “contra os políticos”, mas também fiéis escudeiros do moralismo udenista, promovido pela grande mídia. Perfilaram o lado dos “puros” contra os “políticos impuros”: o neoliberalismo, como utopia da direita, abraçou-se ao economicismo adjetivado de impropérios esquerdistas, para atacar um projeto político que vem resgatando da miséria milhões de brasileiros.
Os delitos que os réus cometeram – ou não cometeram – foram secundarizados neste processo do “mensalão”. Mas, o “lado” que os réus estiveram no processo político recente este, sim, foi muito importante e precisava ser vulnerabilizado. Tratava-se – como foi repetido exaustivamente em horário nobre – de “um esquema do PT para se eternizar no poder”.
As provas dos crimes se tornaram, assim, secundárias e o processo judicial poderá legar – num desserviço político à democracia – ao invés de condenados por crimes provados, “mártires” do ataque aos princípios “garantistas”. Alguns foram condenados, não pelos crimes provados, mas por suposições enquadradas (de fato) como “crimes políticos” para comprar reformas”.
O Estado Democrático de Direito não foi organizado para ser perfeitamente “justo”, mas o foi para ser adequado a um período histórico democrático do desenvolvimento capitalista, com desigualdades. E, muito menos, foi produzido para “revogar” o controle do capital sobre a vida pública e privada. Nem tiveram esta pretensão os seus constituintes. O que o Estado de Direito reflete, em geral, é o encravamento de conquistas do mundo do trabalho, do iluminismo democrático e das lutas libertárias da inteligência socialista mundial, no cerne do Estado.
Esta sua virtude é, todavia, uma finalidade secundária da sua organização jurídica, embora ela seja real e importante. A sua finalidade principal é manter, com um mínimo de coesão social, as desigualdades num nível em que as demandas de igualdade real não ameacem o desenvolvimento do capitalismo.
Da nossa parte – da esquerda em geral e do PT – não podemos esquecer que é preciso não só discutir os efeitos políticos do julgamento, mas também as condições institucionais e políticas, que abriram espaços para os nossos erros. Isso significa privilegiar duas lutas de fundo, sem as quais tudo poderá acontecer de novo: financiamento público das campanhas, para reduzir a influência das empresas no comportamento dos políticos e verticalidade das alianças, para formar partidos fortes, que possam se libertar das alianças sem princípios no Estado. Estas reformas sim ajudarão a melhorar todo o espectro político do país e, especialmente, ajudarão a viabilizar uma atuação mais autêntica da esquerda no palco da democracia e no cenário da Revolução Democrática.
Tarso Genro é Governador do Estado do Rio Grande do Sul
Fonte: Sul 21
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