"Dá-me os fatos e te darei as leis", diz amáxima sobre o trabalho de um juiz. Pois os juízes brasileiros tiveram de lidar com muitas na última década: de 2000 a 2010, o país criou 75.517 leis, somando legislações ordinárias e complementares estaduais e federais, além de decretos federais. Isso dá 6.865 leis por ano —o que significa que foram criadas 18 leis a cada dia, desde 2000. Mas, em vez de contribuir para a aplicação do Direito, boa parte dessa produção só serviu para agravar os problemas da máquina judiciária. A maioria das leis é considerada inconstitucional e acaba ocupando ainda mais os tribunais coma rotina de descartá-las. Outras, mesmo legítimas, viram letra morta, pois o juiz as desconhece ou prefere simplesmente ignorá-las. E outras têm arelevância de, por exemplo, criar o Dia da Joia Folheada ou a Semana do Bebê. Embora as mazelas da Justiça sejam, muitas vezes, associadas à falta de leis apropriadas, é justamente o excesso delas um dos fatores que emperram o Judiciário. Outro motivo seria a baixa qualidade da produção legislativa — uma lei que não se liga à realidade social, ou outra que não se baseia em princípios constitucionais.
Há ainda os problemas enfrentados pelo Judiciário no seu trabalho, ao lado da própria falta de compreensão da sociedade sobreaJustiça. O GLOBO discute essas questões numa série de reportagens que começa hoje, sobre oseguinte tema: por que uma lei não pega no Brasil?
Das 75.517 leis criadas entre 2000 e 2010, 68.956 são estaduais e 6.561, federais.Minas Gerais foi omaior legislador do período: criou 6.038 leis. Em seguida, Bahia, criadora de 4.467 leis; Rio Grande do Sul, com 4.281; Santa Catarina, com 4.114; e São Paulo, com 4.111. ORio de Janeiro criou 2.554 leis nesse período. Esse total de 75mil leis nem leva em conta as municipais — o que faria subir consideravelmente esse número, já que, segundo a Confederação Nacional dos Municípios, existem atualmente no país 5.500 Câmaras municipais e 55 mil vereadores.
A inconstitucionalidade é um dos principais problemas na qualidade das leis, sobretudo as estaduais e municipais; uma lei tem sua constitucionalidade questionada por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin). De 2000 a 2010, oSupremo Tribunal Federal (STF) julgou 2.752 Adins, relativas a leis federais e estaduais; de 1988 até agora, 20,5% dessas foram julgadas inconstitucionais. Nos estados, só o Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, julgou, em 2010, 338 Adins questionando leis estaduais e municipais. Da lei que institui oDia do Motoboy no estado à que exige times femininos jogando nas preliminares das rodadas decisivas do campeonato estadual de futebol, 80% das leis que chegam para a sanção do governador Sérgio Cabral são consideradas inconstitucionais pela Procuradoria Geral do Estado. Especialistas estimam que esse percentual médio se repita em outros estados.
Ociosidade ainda é crime, mas artigo é um dos que não servem para nada
Por erros de origem, algumas leis já nascem mortas. Outras, outrora importantes, vão perdendo o propósito com a evolução dos costumes sociais e deixam de ser aplicadas, mesmo sem sair de cena. Um dos casos clássicos é a Lei das Contravenções Penais, de 1941, que está em vigor, mas mantém artigos que hoje chegam a arrancar risadas daqueles que deveriam aplicá-los.
Pretexto da polícia, no passado, para levar à prisão suspeitos de crimes de difícil comprovação, o artigo 59 prevê prisão simples, de 15 dias a quatro meses, para os que se entregarem "habitualmente à ociosidade, sendo válido para o trabalho, sem ter renda que lhe assegure meios bastantes de subsistência, ou prover à própria subsistência mediante ocupação ilícita".
— Como não havia prisão preventiva, a polícia usava esse artigo para preencher a lacuna. Era uma coisa absurda punir por ociosidade num país com problema de desemprego— recorda-se o desembargador Manoel Alberto Rebelo dos Santos, presidente do Tribunal de Justiça do Rio.
Fonte: Congresso em Foco
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