sábado, 26 de março de 2011

Suprema incerteza


A decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a Lei da Ficha Limpa conseguiu a proeza de tornar incertos o passado e o futuro. Por demorar tanto a decidir, na incapacidade do presidente do STF de exercer suas prerrogativas, a decisão vai refazer em parte o resultado da eleição de 2010. Por não decidir sobre outros aspectos da lei, estende a insegurança jurídica para 2012 e além.
O presidente Cezar Peluso poderia ter decidido, quando houve o impasse no ano passado. Havia dois caminhos. Um seria usar o voto de minerva. Mas ele argumentou que isso o faria mais poderoso que os outros. Se usasse esse poder, o resultado seria o mesmo de agora, ou seja, a lei não valeria para 2010, mas a vantagem teria sido esclarecer a situação antes da eleição, e o pleito não teria ocorrido em ambiente de insegurança jurídica. Outro caminho seria olhar o regimento do Supremo que diz que em caso de empate, vale a lei contestada.
Por não ter usado nem as prerrogativas do presidente, nem recorrido ao regimento, o STF levou o país à estranha situação de rever o passado. Cálculos de quociente eleitoral terão que ser refeitos; políticos que assumiram e votaram nas matérias da pauta serão considerados não eleitos, exerceram mandatos que não tinham. Isso porque o Judiciário lavou as mãos diante da demora do Executivo na nomeação do décimo primeiro ministro, aquele que já entrou com superpoderes, porque dependia apenas dele uma decisão que afeta milhões de votos. O voto do ministro Luiz Fux foi decepcionante não por ir contra a opinião pública, mas pela fraqueza técnica de seus argumentos. Ele admitiu que se “sentiu tentado a votar a favor.” Assim decide o novo ministro: no jogo das suas tentações.
A frustração do eleitor com a decisão do Supremo é maior pelo tamanho do percurso feito pela Lei da Ficha Limpa. Foi uma mobilização popular com método e propósito, que colheu 1,6 milhão de assinaturas, que seguiu a tramitação no Congresso.
O cidadão que se mobilizou, superou cada etapa do processo legal, que se emocionou com cada vitória, está diante de uma desconcertante derrota. É certo que o Supremo tem que ter a coragem de se opor a uma lei, mesmo popular, se ela ferir o Direito. Mas a questão é: será que fere? Se fosse tão líquido e certo o Supremo não teria se dividido. Os argumentos do TSE e dos que votaram pela lei são fortes: a lei foi sancionada antes das convenções, portanto não revogou direitos; candidatos que desfilam pelo Código Penal com suas biografias ferem o princípio da moralidade pública; a inelegibilidade não é uma pena, é um estado.
A lei propõe barrar a candidatura de quem foi condenado em segunda instância, porque o julgamento de uma única cabeça, a decisão de um juiz, tem mais risco de ser falha. Numa decisão colegiada, a condenação passa por escrutínio de vários juízes. É uma confirmação, portanto, e assim trabalha a Justiça: para que o colegiado corrija eventuais erros de julgamento da decisão de um único juiz. A lei pega quem praticou crimes dolosos, onde há intenção, e para quem foi condenado acima de dois anos por tráfico de entorpecentes, crimes contra a vida, a economia popular, o meio ambiente, os condenados por abusos de poder econômico, por corrupção eleitoral, por improbidade administrativa. Mas apenas crimes com penas acima de dois anos, e sentenças confirmadas em segunda instância. Não é para pequenos casos, onde há controvérsias sobre a culpa, ou o peso do crime cometido.
Mas a maioria decidiu que fere o princípio da anterioridade. Assim, muda-se o passado, mas salva-se o futuro. Outra vã esperança. Hoje, a insegurança continua, segundo informa o ministro Ricardo Lewandovsky. Não se sabe em que contexto legal se votará em 2012. Questões e questiúnculas levadas por réus à Corte podem fatiar a lei e torná-la cada vez mais fraca. A falha do Supremo mantém a dúvida em vigor.
O princípio da presunção da inocência tem que ser entendido em sua essência. Até que ponto vai o princípio? Fernandinho Beira-Mar pode ser eleito? O jornalista Pimenta Neves, assassino confesso, julgado por duas instâncias, aguardando recursos ao Supremo, além de permanecer livre enquanto durarem as artimanhas de seu advogado, é elegível? Do que estão falando os magistrados superiores que defendem aos estertores a presunção da inocência? Será que ignoram que advogados bem pagos sabem sempre como encontrar uma vírgula na qual prolongar os processos da labiríntica Justiça brasileira?
O ministro Cezar Peluso usou um argumento revelador de oceânico despreparo: “Essa exclusão da vida pública com base em fatos acontecidos antes da vigência da lei é uma circunstância histórica que nem as ditaduras ousaram fazer. As ditaduras cassaram. Nunca foi editada uma lei para punir fatos praticados antes de sua vigência.” Esse raciocínio é tão raso e torto que constrange. Ora, o que foram as cassações da primeira hora da ditadura de 1964 senão a punição ao que foi praticado antes da vigência da ordem ditatorial e com base em leis baixadas para punir atos anteriores? E que nem eram crimes. É de se esperar que um ministro da corte constitucional não legitime atos de um regime fundado sobre a suspensão das garantias constitucionais. Por favor, ministro, não revogue nossa memória e inteligência. Esclareça que crimes cometeram — antes ou durante a ditadura — os ministros do Supremo Evandro Lins e Silva e Victor Nunes Leal, cassados em 1969, pelo Ato Institucional número 6. Ministros a cuja memória, biografias e conhecimento jurídico Peluso deve, ao menos, respeito.
Míriam Leitão e Alvaro Gribel

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